quinta-feira, 8 de março de 2012

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

Carta a uma mãe.

Querida Dna. Mafalda.
Quando nos conhecemos, há cerca de quinze anos atrás, confesso-lhe que eu era muito ignorante sobre as questões das pessoas com deficiência.
Naquela época, durante o governo do prefeito Celso Daniel, em que juntos construíamos o primeiro conselho municipal de pessoas com deficiência da Região do ABC, e certamente um dos primeiros do Brasil, eu já tinha uma militância antiga e a senhora também. Eu, coordenando o processo, representava o governo, a senhora, sempre muito aguerrida, representava a sociedade civil.
Eu, no entanto, via, ainda, a questão das pessoas com deficiência de uma maneira muito limitada. O que me preocupava, sobretudo, era a acessibilidade arquitetônica. Julgava que havendo rampas, elevadores, transporte adaptado e outras coisas do tipo, tudo estaria resolvido para as pessoas com deficiência. Meu Deus! Como meu modo de ver era pobre. Pensando que sabia muito, descobri que sabia muito pouco.
Graças à senhora e a muitas outras mães de pessoas com deficiência, sobretudo mães de pessoas com deficiências severas e deficiências intelectuais, aprendi muito. Tornei-me um pouco menos ignorante.
Por ser uma pessoa com deficiência, já passei por inúmeras situações de preconceito e de constrangimento. Sempre encarei esses momentos com altivez e, creio, com sabedoria, nunca me deixo abater, ao contrário, fortaleço-me a cada obstáculo.
O preconceito e o constrangimento se materializam de muitas formas: a falta de uma rampa, o fato de não poder entrar em algum lugar onde preciso ou quero ir, a falta de um banheiro acessível, e pior: um olhar de pena ou de dó, uma palavra que se refira ao sofrimento da deficiência, quando na verdade o sofrimento é o da exclusão.
Sei muito bem que essas situações são também vividas por muitas outras pessoas com deficiência, são também assim para muitas famílias e muitas mães de pessoas com deficiência. E certamente o preconceito e o constrangimento maior pelos quais passamos é o que eu chamo de menosprezo social, é como se nós fossemos menos, como se valêssemos menos. E quanto mais acentuada é a deficiência menos valorizados somos, quanto mais acentuada é a deficiência maior é o menosprezo e maior é a carga que, sozinhas, as famílias e as pessoas com deficiência têm que carregar.
Uma coisa muito forte, que a senhora falou um dia, sobre sua filha, marcou-me muito e sempre me mobilizou. A senhora disse: “Quando eu morrer a Luzia terá que morrer também, pois não haverá ninguém para cuidar dela.”
A senhora não sabe, mas agora não uso mais muletas, há uns quatro anos adotei definitivamente a cadeira de rodas, uso na maior parte do tempo uma cadeira motorizada e estou muito feliz com isso. Moro no Centro de São Paulo e vou a muitos lugares de Metrô e ônibus. Tenho duas filhas, casei-me com uma mulher linda, Roberta, que é mãe da Leona, a mais nova, de apenas dois meses. Levo minha vida, quase que normalmente.
Mas, conheço muitas mães como a senhora, que lutaram a vida toda por uma vida digna para seus filhos e filhas com deficiências severas e que encontram sempre e sempre obstáculos, sempre e sempre portas fechadas, sempre e sempre incompreensão e nada se resolve, e nada mais podem esperar a não ser que seus filhos acabem em algum asilo ou abrigo quando faltarem seus cuidados.
Há alguns anos atrás, juntamente com uma amiga que tem uma deficiência física severa e que estuda toda essa situação que leva muitas pessoas com deficiência a viverem em abrigos, produzi um vídeo sobre o tema[1], que lhe envio uma cópia agora. Para realizá-lo, graças a um financiamento da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, conheci várias instituições e outras experiências de moradias para pessoas com deficiências severas e para pessoas com sofrimento psíquico: moradias assistidas, casas-dia, residências terapêuticas. Também estive em grandes e assustadoras instituições, onde centenas de pessoas com deficiência passam toda a sua vida.
Instituições com duzentas, trezentas, quinhentas pessoas com deficiência internadas, sem futuro, sem passado, sem presente, abandonadas a uma rotina massacrante. Conheci uma instituição que possui até um cemitério próprio, ou seja, as pessoas não saem de lá nem mortas.
Vi muitas famílias, mães, que mesmo amando seus entes queridos são obrigadas a interná-los porque não têm como cuidar deles, mães sozinhas que precisam trabalhar. Famílias muito pobres que moram em habitações que não oferecem condições mínimas para o cuidado de uma pessoa com deficiência severa. Mas, vi também trabalhos, chamados “de volta para casa”, em que famílias, recebendo o apoio que precisam, voltam a acolher seus parentes que estavam internados.
Vi também residências dignas, com todo o apoio necessário para um número pequeno, de quatro a dez pessoas, como as que foram criadas pela APAE de Bauru, a APAE de Belo Horizonte. A Casa de David, com quase quatrocentos moradores, doze moram em residências fora da instituição. É pouco, mas é uma iniciativa interessante. Também conheci uma experiência muito boa realizada pela prefeitura do Rio de Janeiro, entre outras.
A partir daí começamos a trabalhar para que essas e outras experiências, tais como os programas de apoio às famílias, as casas-dia e as residências inclusivas, se tornem cada vez mais uma realidade em nosso dia a dia. Criamos, em 2004, o Fórum de Residências Inclusivas que, durante vários anos, realizou dezenas de reuniões com especialistas, familiares e gestores públicos. Escrevemos diversos documentos, realizamos um seminário e conseguimos incidir em programas de governos. A senhora deve ter visto o lançamento, pela presidenta Dilma, do Programa Viver sem Limite. Pois é, nesse Programa, conseguimos fazer constar a implementação de 200 Residências Inclusivas em várias regiões do Brasil.
Estamos agora acompanhando e pressionando para que essa política saia do papel e que seja de boa qualidade. Precisamos de muitas pessoas como a senhora para nos ajudar nisso.
A senhora deve conhecer a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência[i]. No seu artigo 19, do qual também envio uma cópia, a Convenção fala justamente sobre isso: o direito à vida em comunidade, com dignidade, das pessoas com deficiência, remetendo ao fim das instituições asilares e a uma nova maneira de se pensar a vida, a atenção e o cuidado para as pessoas com deficiências severas.
A Convenção da ONU foi incorporada à Constituição do Brasil, agora, pelo menos, estamos muito bem amparados pela legislação, mas, sem pessoas como a senhora a lei não acontece.
Um grão de areia no deserto, uma gota de água no oceano podem não fazer diferença, mas uma pessoa em meio a bilhões de seres humanos faz diferença. A senhora faz diferença!

Tuca Munhoz
Fevereiro de 2012 


[1] Esse vídeo também pode ser assistido no site do MID www.mid.org.br



[i] O texto completo da Convenção também está no site do MID.